sexta-feira, 29 de julho de 2011

Diário do aprendiz – 29 de julho de 2011


Abrigar-se na fortaleza da paz

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V - Há Metafísica Bastante em Não Pensar em Nada

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.


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Não acho que Alberto Caeiro condene todo e qualquer pensamento. Pensar, em alguma medida, é necessário - ou o poema acima nem poderia ser escrito! O problema consiste em pensar demais, pensar quando não é hora para isso, pensar sobre coisas que não devem ser pensadas. Todos sabemos que há uma dimensão da vida perante a qual o pensamento se torna muito pequeno - algo que percebemos, talvez, ao contemplar um céu estrelado ou refletir sobre nossa própria finitude. Claro, a ciência pode investigar os segredos do universo, a filosofia pode refletir sobre a condição humana - mas tudo isso é limitado, é o mesmo que usar palavras para descrever um pôr do sol. Ainda que elaboremos ideias sobre o "mistério das cousas" ou o "sentido íntimo do universo" (como escreve Caeiro), cumpre reconhecer que nosso pensamento mal arranha essas questões, e aceitar que há uma fronteira além da qual ele se torna inútil. A partir desse ponto, toda compreensão que conseguirmos ter se limitará sempre a alguns insights, cuja duração será muito breve e cujo conteúdo jamais conseguiremos traduzir em palavras.

E o poeta discorre bastante sobre a crença em Deus. Neste ponto, seria impossível eu concordar mais com ele. O problema não é apenas que essa crença se arrisca muito a ser apenas isto: uma crença (embora não exista, realmente, uma explicação científica para mistérios como o surgimento do universo). O problema é também que, mesmo que Deus exista, deve ter uma natureza inacessível à compreensão humana. Acontece que a maioria dos seres humanos (organizados em religiões ou individualmente) insistem em ter suas próprias teorias sobre Deus, como se pudessem conhecê-Lo. É uma verdadeira ironia que o tamanho deste mistério chamado Deus só seja igualado pela facilidade com que acreditamos conseguir explicá-Lo.

Um grande pensador chamado Krishnamurti disse uma vez que há perguntas que devem ser mantidas sem resposta por toda a vida. Deus (ou a origem de tudo, ou seja lá como o chamemos) é uma pergunta assim.

Nota:

Imagem de Vaticanus