sexta-feira, 15 de julho de 2011

Diário do aprendiz - 15 de junho de 2011

Nunca esquecer que o mistério existe

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IV - Esta Tarde a Trovoada Caiu

Esta tarde a trovoada caiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme...

Como alguém que duma janela alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por caírem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cair,
A chuva chovia do céu
E enegreceu os caminhos...

Quando os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei porquê — eu não tinha medo —
pus-me a rezar a Santa Bárbara
Como se eu fosse a velha tia de alguém...

Ah! é que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo que sou...
Sentia-me familiar e caseiro
E tendo passado a vida
Tranquilamente, como o muro do quintal;
Tendo idéias e sentimentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor...

Sentia-me alguém que possa acreditar em Santa Bárbara...
Ah, poder crer em Santa Bárbara!
(Quem crê que há Santa Bárbara,
Julgará que ela é gente e visível
Ou que julgará dela?)

(Que artifício! Que sabem
As flores, as árvores, os rebanhos,
De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore,
Se pensasse, nunca podia
Construir santos nem anjos...
Poderia julgar que o sol
É Deus, e que a trovoada
É uma quantidade de gente
Zangada por cima de nós...
Ah, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estúpidos
Ao pé da clara simplicidade
E saúde em existir
Das árvores e das plantas!)

E eu, pensando em tudo isto,
Fiquei outra vez menos feliz...
Fiquei sombrio e adoecido e soturno
Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça
E nem sequer de noite chega.


~

É interessante que, neste poema, Alberto Caeiro se deixa invadir por uma certa nostalgia da fé religiosa. (“Ah, poder crer em Santa Bárbara!”) Mas ele logo volta atrás, pois o que preza acima de tudo é a simplicidade do pensar e do sentir, e percebe que não há nada de verdadeiramente simples na crença religiosa. Uma pessoa precisa realizar um grande esforço interior para se convencer de “verdades” que carecem de fundamento. A fé se origina, em larga medida, do desejo de segurança, do medo do futuro, emoções que têm raízes profundas na natureza humana e não são nem um pouco simples.

Todavia, se a fé religiosa é complicada do ponto de vista psicológico, tende a ser extremamente simplista do ponto de vista do conhecimento que produz. A religião pretende fornecer respostas para questões como a origem do universo e o sentido da vida humana por meio das fórmulas simplificadoras da interferência divina, da vida após a morte etc. Assim, enquanto os cosmologistas se veem incapazes de explicar o surgimento do universo – pois é tão logicamente absurdo crer que ele teve origem num ponto específico do tempo quanto crer que existiu desde sempre –, os teologistas resolvem tudo referindo-se à ação de Deus. E, enquanto todos os seres humanos dotados de capacidade reflexiva precisam lidar com a dolorosa consciência de sua própria finitude, as religiões oferecem um consolo fácil com promessas de uma suposta existência futura. O fato é que, em termos puramente científicos, a existência do universo se mostra um mistério maior do que qualquer religião jamais conseguiu imaginar. E em termos puramente filosóficos, a existência humana se mostra um problema mais complicado do que qualquer religião consegue admitir.

Alberto Caeiro compreendeu que a religião nega a simplicidade interior com que todos devíamos nos posicionar em face do mundo e da vida. De minha parte, entendo que a religião nega a verdadeira complexidade de tudo que existe, com base numa visão simplista e desprovida de qualquer fundamento. Em ambos os casos, a religião mostra estar comprometida não com a busca pelas verdades do mundo e da vida, mas apenas com a perpetuação de seus próprios dogmas. Isto é, consigo mesma.

Nota:

Imagem do documentário No journey´s end [Viagem sem fim], de 2006.